A devoção não se explica, tampouco, pela presença do grupo na chamada grande mídia. O Teatro Mágico nunca teve gravadora, não é convidado para programas de TV, não toca em rádios comerciais. Mistura música com circo e teatro e gosta de politizar suas canções e apresentações. Vendeu 350 mil cópias do primeiro álbum, “Entrada para Raros” (2003), de modo totalmente artesanal – o pai de Fernando Anitelli (o líder do grupo) produzia e vendia os discos nos shows, um a um.
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“A Sociedade do Espetáculo” deve seguir esses mesmos padrões. Apesar de convites recebidos de várias gravadoras, segundo Fernando, até hoje não houve acordo. Razões não faltam, e vão além do fato de o grupo gostar de canções politicamente engajadas. Todos os trabalhos são liberados na internet para download, oficial e gratuitamente, sob licenças Creative Commons. A trupe não quer abrir mão da venda direta dos CDs por preços baixos, nem de editar suas próprias canções sem intermediação de companhias multinacionais.
Entre os temas do novo disco (que terá 16 canções e três vinhetas), contam-se menções simpáticas ao Movimento Sem-Terra, referências às revoltas populares no Oriente Médio, críticas à “heterointolerância branca” de nossa sociedade, canções suavemente feministas, e assim por diante.
O Teatro Mágico concedeu uma audição com exclusividade à reportagem, num dos últimos dias de gravação e mixagem no estúdio Oca – Casa de Som, em São Paulo. Seguem abaixo descrições das 16 faixas, com comentários de Fernando durante a audição.
“Além, Porém, Aqui” – “Termina com uma frase brega, ‘semear o amor’”, avisa Fernando Anitelli, temeroso dos próprios versos. “Mas é a primeira música do álbum, e fala da compreensão de um momento mais amadurecimento, de uma nova conduta. É uma coisa pra cima, pra frente.” O músico ressalta o verso “anuncia teu dissabor”, como o convite ao ouvinte para que exerça, com liberdade, seu próprio espírito crítico: pintar um mundo cor-de-rosa não é um dos propósitos d’O Teatro Mágico.
“Da Entrega...” – Os verbos no infinitivo, característicos de Anitelli, dominam a letra politicamente engajada: “apoderar-se de si”, “resistir”, “ser plural”, “repartir o acúmulo”... Em vez de ordenar ao rebanho que faça o que ele diz, o pregador prefere sugerir, com sutileza, um comportamento coletivo, colaborativo, compartilhado.
“Quermesse” – “Fiz 15 anos atrás, na mesma época do primeiro álbum, a gente nunca gravou. A letra é mais singela”, Fernando justifica o romantismo à moda antiga da canção. “Minha nossa, é só ficar longe, que logo eu penso em você”, proclamam os versos amorosos.
“Amanhã... Será?” – A inspiração, aqui, são as recentes mobilizações populares em países do Oriente Médio, na Espanha e no Brasil. Os integrantes do Teatro Mágico costumam frequentar as marchas em São Paulo caracterizados, em contato direto e íntimo com a multidão. “Essa revolução, na verdade, é interior”, filosofa Fernando, que ao ouvir destaca a atuação de Galldino, figura-chave nos discos e shows do grupo, nos violinos. “Ele é meio cigano, um ermitão que mora na montanha do Embu, no meio do mato.”
“Transição” – “Esta hetero-intolerância branca te faz refém”, diz a canção pop que trata de temas de que canções pop em geral simulam não gostar. “Contaminam o chão família e tradição”, provoca o rock meio celta (segundo Fernando) que fala de “ter direito ao corpo” e à “terra-mãe que nos pariu”.
“O Outro Testamento” – O arranjo usa batida de funk carioca, opção assim explicada pelo coprodutor do disco e coautor da faixa, Daniel Santiago, músico do celebrado quinteto de Hamilton de Holanda: “Nasci em Brasília, mas morando no Rio durante nove anos aprendi a gostar do funk carioca. Morei perto de um morro, do meu banheiro dava pra ouvir na favela, quase todos os dias. O ritmo veio da capoeira, do maculelê, é totalmente brasileiro. Funk definitivamente é uma linguagem e uma manifestação cultural brasileira, veio pra ficar”.
“Assim Que For” – A canção é inspirada em uma fã anã que virou amiga, depois moderadora de comunidades do Teatro Mágico em redes sociais, e morreu poucos meses atrás. “Milagres acontecem quando a gente vai à luta”, diz a letra ao final, tomando frase emprestada de Sérgio Vaz, poeta, ativista e criador da Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia).
“Eu Não Sei na Verdade Quem Eu Sou” – Fernando explicita a origem: “Tentei escrever com teorias de crianças, inspirado numa reportagem sobre os Doutores da Alegria que meu pai me mostrou. Uma criança dizia que um palhaço é um homem todo pintado de piadas’, outra dizia que sonho era uma coisa que ela guardava dentro de um travesseiro. E os doutores diziam que não sabiam se eram médicos, atores, palhaços, ou se eles estavam sendo curados fazendo aquilo. Quem de fato sabe o que é?”.
“O Nosso Pequeno Castelo” – A levada é nordestina, e a voz em dueto é de Ivan Valente, que, como Galldino, tem registro de voz agudo, algo feminino.
“Folia no Meu Quarto” – Essa faixa contém a única voz feminina do CD, de Nô Stopa, filha do cantor e compositor Zé Geraldo. “Fiz com ela há uns dez anos, a gente brigou por causa dessa música, ‘você escreveu aquilo’, ‘não, só um pedaço’, ‘então você é falso’. Ficamos dois anos sem nos falar. Na verdade éramos apaixonados, ela namorava outro cara, eu namorava outra menina”, Fernando revela. O romance, diz, não se concretizou; a parceria, sim.
“Terra” – “Pedro Munhoz é um trovador do Rio Grande do Sul, tem uma participação grande dentro do Movimento Sem-Terra”, Fernando explica mais uma canção de tom engajado em “A Sociedade do Espetáculo”. “Ser sem-terra, ser guerreiro/ com a missão de semear/ (...) a terra é de quem semear”, diz a letra, sob cativante melodia interiorana.
“Você Me Bagunça” – “Aprender você sem te prender comigo” é o que prega a letra de declaração de amor, mas também de aceitação da distância e do afastamento. “Escrevi cheio de saudade, chorando, para minha ex-namorada”, explica Fernando.
“Tática e Estratégia” – “Essa foi uma paixão latina que eu tive”, diz Fernando, afirmando que a inspiração vem do poeta uruguaio Mario Benedetti.
“O Que Se Perde Enquanto os Olhos Piscam”– Uma levada bem Beatles em 1967 introduz uma canção coletiva batizada pela amiga Belinha. “Fiz com o pessoal do Twitter, estava lá ao vivo e falei: ‘Gente, vamos fazer uma música agora? A ideia é listar objetos que a gente perde e não se dá conta’. Todo mundo começou a mandar coisa: guarda-chuva, documento, aliança, chaveiro, cadeado, óculos escuros, tampa de caneta... Simplesmente montei uma ordem de estrofes.” Entre objetos mais corriqueiros, começam a aparecer outros de inserção mais simbólica, “pronde vai o solo que não foi escrito?”, “pronde foi a coragem do meu coração?, “pronde vai a culpa da cópia?”, “pronde foi a versão original?”, os dois últimos relacionados com a visão combativa do Teatro Mágico sobre direito autoral, Creative Commons etc.
“Nas Margens de Mim” – Parceria e dueto com o músico carioca Leoni, foi criada via internet e telefone. “Eu tinha a música, ele trouxe a letra, Daniel inventou a harmonia do violão. Em termos de funcionalidade é perfeito”, diz Fernando, admitindo que é perceptível que cada voz foi gravada em ambiente diferente. “A gente foi fazendo, só que tinha elétrons entre a gente.”
“Fiz uma Canção pra Ela” – Parceria de Fernando com Galldino, é uma canção de amor com viés politizado: “Fiz uma canção pra ela/ na mais bela tradução de igualdade e autonomia/ ao teu corpo e coração”. “A mulher não tem autonomia sobre o próprio corpo, quando se fala de aborto, de postura”, argumenta Fernando. “Se a menina usa roupa curta, tem culpa por ser estuprada?, peraí. É uma canção de amor à mulher, mas colocando ela como liberta, não como uma mulher que precisa ser protegida, carente, solitária, pobre, fraca, indefesa, santa, mãe. É amor, mas de igual pra igual”.
Fonte:iG
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