Foto: Angeluci Figueiredo/Arquivo
João Gilberto, em sua última apresentação em Salvador
Doris Miranda | Redação CORREIOdoris.miranda@redebahia.com.br
Um banquinho, um violão, um fiapo de voz. O baiano João Gilberto Prado Pereira de Oliveira não precisou de mais nada para se afirmar como um dos gênios da bossa nova, um dos tripés do estilo musical ao lado de Tom Jobim (1927-1994) e Vinicius de Moraes (1913-1980). Um homem em cujo DNA sempre esteve registrado o pendor para a perfeição, e ainda hoje, meio século depois de revolucionar a MPB, é dono de suas próprias vontades. Nesta sexta, dia 10, o artista completa oito décadas de vida.
Tais vontades o definem e o transportam de uma existência reles para uma vida muito particular, marcada por pequenas (ou grandes) idiossincrasias. Algumas toleráveis, outras esquisitas, como bem lembram os que passaram por seu caminho.
O cantor, compositor e ex-Novos Baianos Paulinho Boca de Cantor, 65 anos, se recorda do tempo em que passou ao lado do filho mais ilustre de Juazeiro. Numa dessas madrugadas que o encontrou nos anos 70, ao lado de Moraes Moreira e Galvão, Paulinho lembra que João convidou o trio para um passeio pelas ruas do Rio de Janeiro.
“Eu fui o último a sair e deixei o portão aberto. Ele me fez voltar para fechar, dizendo que se eu não fizesse aquilo tudo na minha vida seria daquela forma, aberto, sem conclusão”, recorda.
Profético
Esquisitice? Superstição? “João tem uma visão muito ampla da vida, uma coisa meio cósmica, meio profética. As pessoas pensam que ele é doido, mas a gente tem que ouvir o que ele diz sempre porque ele sabe das coisas. O problema é que ele fala sério e as pessoas pensam que está brincando”, opina Paulinho, que repetiu a experiência em 1988, quando morava em Nova York.
“Reencontrei João e foi ótimo, ajudei ele a mudar de hotel durante a madrugada e ficamos nos vendo nos 15 dias que ele passou lá, tocando para mim, me passando ensinamentos da vida, relembrando o tempo dos Novos Baianos, que ele adorava. O sonho dele era ter uma turma para viver como nós, fazendo música juntos o tempo inteiro”, conta.
Deve ser disso que o músico Tuzé de Abreu, 63 anos, sente falta, do misto de nordestino comum, que adora umbu, requeijão, farinha e carne de bode, com o gênio musical, capaz de passar dez horas seguidas tocando a mesma coisa.
Rompimento Tuzé e João estão sem se falar desde 2006, quando João rompeu depois de um desentendimento acontecido no Japão, onde é adorado como deus. Quando Tuzé quis voltar para retomar os compromissos da vida cotidiana familiar, João não deixou e colocou ponto final na amizade.
“Tenho muita saudade dele, sim. Se pudesse, não teria me afastado. Mas, ele é extremamente sensível, não tem hábitos como os nossos. João é uma das grandes perdas da minha vida; acho que, nesta encarnação, ele não volta a falar comigo”, ressente-se Tuzé, que, em silêncio, continua a mandar cestas de iguarias de presente para o amigo.
“É isso mesmo, a vida segue. No meu entender de leigo para outras linguagens, João Gilberto é o maior artista de qualquer arte e de qualquer tempo do mundo. Nele vejo tudo e muito mais. Vejo coisas que ainda não vislumbrei”, define Tuzé.
Não à toa, João Gilberto ganhou três Grammy, um dos quais de melhor álbum, em 1964, com o disco Getz/Gilberto, que gravou ao lado do jazzista americano Stan Getz (1927-1991) , e do qual participam Tom Jobim e Astrud Gilberto, esposa de João na época e mãe de seu filho João Marcelo, 51 anos. João Gilberto também é pai de Bebel Gilberto, 45, e de Luísa, 5, esta filha da jornalista Cláudia Faissol.
Batida
Não foi por acaso que João Gilberto inventou a batida que define a bossa nova. Fã de Orlando Silva, ele queria utilizar a voz como instrumento. Obcecado, trabalhou como um ourives para encontrar a medida perfeita para o sonho que acalentava no final dos anos 50: a lavra perfeita para a batida de violão que casaria com o novo jeito de cantar.
Quando encontrou o que queria, batizou o resultado como Bim-Bom, gravada num compacto com Chega de Saudade, de Tom e Vinicius. A música nomeou o primeiro álbum de João, Chega de Saudade (1959), considerado por muitos o disco que mudou a história da MPB . “João juntou o ritmo com a técnica”, costumava dizer Baden Powell (1937-2000).
Estudioso
Durante as sessões de gravação do disco, João Gilberto chocou os técnicos de som ao pedir um microfone extra só para seu violão soar adequadamente. Depois de Chega de Saudade, João lançou mais dois álbuns, O Amor, o Sorriso e a Flor (1960) e João Gilberto (1961). Essa trilogia se consolidaria como fundamento do novo estilo musical.
Não era para menos. Estavam ali algumas das canções ícone da bossa nova: Samba de uma Nota Só, Corcovado, O Pato, O Barquinho, Coisa Mais Linda e Insensatez. Músicas que ele canta até hoje, sempre de forma única. “Ele é o cara que mais estuda na vida. Você pode até achar que ele repete o mesmo repertório, mas vai ser sempre diferente”, avalia Tuzé de Abreu. Coisas de gênio.
Mitos e verdades sobre João
Ferro de passar Casado com Astrud Gilberto, já bem conhecido em Nova York, João Gilberto estava no camarim do Carnegie Hall, em novembro de 1962, quando empacou, ameaçando não entrar em cena porque a calça que vestia estava sem o vinco. Precisou a cônsul geral do Brasil, Dora Vasconcellos, passar a ferro a vestimenta do baiano para que ele saísse.
Gato suicida
Na época em que estava preparando a música O Pato, João perdeu Gato, bichano que adorava. Dizem as más línguas que o felino se jogou da janela do edifício porque não aguentava mais ouvir O Pato na voz do dono. Na verdade, o gatinho resolveu dormir na janela sem redes do apartamento do 10º andar e, numa espreguiçada, escorregou para a morte.
Despejo
João Gilberto está na iminência de ser despejado do apartamento alugado por ele no Leblon, há 15 anos, e pelo qual paga regularmente R$ 8 mil, por pura excentricidade. Isso porque ele se recusa a deixar profissionais contratados pela proprietária realizarem serviços de reparo no imóvel.
Telefone
Ele também adora falar ao telefone. Liga nas horas mais impróprias, é verdade, mas distrai seu interlocutor com opiniões muito bem pensadas sobre assuntos diferentes, como política, religião, esporte e cultura. Quando sente fome, não vê problema em pedir licença para fazer uma boquinha. Mas, fica magoadíssimo se, ao voltar, a pessoa tiver desligado.
Andarilho
Hoje, João Gilberto nunca sai de casa. E nem deixa ninguém entrar, se não estiver na disposição de receber visitas - nem mesmo a faxineira pode vir se ele não chamar. Mas, houve uma época em que ele saía
de madrugada para ver o Rio de Janeiro. Se tivesse a companhia de algum amigo, melhor. Saíam por volta de 1h, perambulavam pelos locais preferidos dele, como a Praia da Guaratiba, e, no final, já de manhãzinha, tomava o mingau de uma vendedora conhecida.
Manual de baiano
Sempre que está em Nova York e encontra algum baiano conhecido, João Gilberto gosta de passar tempo com ele. E, nessas ocasiões, costuma orientá-los sobre como baianos devem se comportar no estrangeiro. Paulinho Boca de Cantor, ex-Novos Baianos, lembra bem: falar alto, gargalhar e espirrar de forma espalhafatosa, nem pensar.
Garrafa térmica
João Gilberto adora café-com-leite e toma mais de 20 xícaras por dia. O músico Tuzé de Abreu diz que, numa das temporadas em que passou com o amigo no Japão, João pedia para trocar as garrafas térmicas toda vez que sentia que a bebida não estava fresca.
Generoso
Paulinho Boca lembra de um caso que ilustra bem a fama de generoso de João Gilberto. Certa vez, soube que um músico conhecido estava passando por dificuldade financeira. Pediu que o rapaz fosse visitá-lo no hotel e recomendou que levasse um saco grande, que encheu com uma soma de dinheiro vivo.
Copos
Dizem que João Gilberto não gosta de lavar pratos porque tem medo de cortar as mãos caso a louça quebre. Quando a coisa fica difícil, pede a uma das raras visitas para lavá-los.
Cana
Um dos casos mais curiosos é o que envolve João e os Novos Baianos. Dizem que, numa noite de drogas é música no apartamento que o grupo tinha no Rio, bateu na porta um homem de terno. Como medo da polícia, começaram a esconder as ‘coisas’ quando ouviram o visitante se indentificar como João Gilberto. “Isso é mentira, não foi ele. Era um amigo nosso de São Paulo, que apareceu todo engravatado e a gente pensou que era cana”, conta Paulinho Boca de Cantor.
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